A cobertura securitária frente à inundação histórica que afeta o Estado do Rio Grande do Sul
Uma das grandes incertezas da população gaúcha dos 471 Municípios diretamente atingidos na inundação histórica, que há mais de 30 dias devasta o Estado do Rio Grande do Sul, é: os bens avariados pelo desastre climático/meteorológico devem ser indenizados pelas seguradoras contratadas?
Em um primeiro momento, a sensação dos cidadãos lesados é a de que, havendo contratação de seguro, há esperança de que os bens avariados, tanto imóveis (residenciais e comerciais) quanto móveis (veículos automotores, eletrodomésticos, estoque comercial…), possam estar contemplados pela cobertura securitária patrimonial e serem indenizados.
O modus operandi das seguradoras, no entanto, é outro. As condições gerais excluem de forma expressa a cobertura securitária de danos decorrentes de quaisquer eventos climáticos e meteorológicos, pois enquadrados nas hipóteses de excludentes de responsabilidade civil, isto é, caso fortuito ou força maior. Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.
Contratualmente, é crucial que sejam analisadas com atenção as condições especiais, que contêm coberturas adicionais às garantias básicas, pois essas prevalecem frente às condições gerais. Igualmente importantes são as condições particulares que eventualmente integram as apólices, pois se sobrepõem às condições especiais (coberturas adicionais) e às gerais (coberturas básicas).
As “letras miúdas” que, não raras as vezes, lesam o consumidor, neste caso específico poderão atuar em prol do consumidor, de forma a expandir a cobertura securitária sobre danos decorrentes da situação de calamidade pública decretada pelo Estado do Rio Grande do Sul por meio do Decreto nº 57.596 de 1º de maio de 2024, que incluiu os eventos climáticos e meteorológicos ocorridos desde o dia 24 de abril de 2024.
Igualmente pertinente é a utilização do entendimento jurisprudencial sobre eventual interpretação restritiva por parte das seguradoras, pois o Judiciário, além de aplicar as normas vinculadas ao Código de Defesa do Consumidor, mais favoráveis aos contratantes (consumidores) na relação contratual com a seguradora, também reconhece a cobertura securitária pela aplicação das normas legais do Código Civil quando constatada a ocorrência de contradição entre as cláusulas contratuais.
Como exemplo, cita-se o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, no qual a 3ª Câmara de Direito Privado, nos autos da Apelação Cível nº 1054067- 88.2020.8.26.010, com fundamento na legislação civil, adotou a melhor interpretação do negócio (artigo 113, §1º, IV, do Código Civil) e a mais consentânea com a função social do contrato e da boa-fé contratual (artigos 321 e 422 do Código Civil):
COBERTURA SECURITÁRIA. DANOS EM IMÓVEL. VENTANIA E CHUVA. Sentença de parcial procedência Irresignação da autora. Aplicação de cláusula contratual de cobertura, não de exclusão de cobertura. Interpretação mais favorável à não estipulante (art. 113, § 1º, IV, CC). Danos causados em piso de andares que decorreram de infiltração de água em razão de aberturas causadas pelos danos iniciais das ventanias. Cobertura devida. Sentença parcialmente reformada, para também condenar a ré à indenização da cobertura securitária dos danos nos pisos dos 5º e 6º andares do imóvel, além das demais coberturas reconhecidas pela sentença, com aplicação de franquia de 10%. Recurso provido. (TJSP, 3ª Câmara de Direito Privado, AC 1054067-88.2020.8.26.0100, Relator Des. Carlos Alberto de Salles, Julgado em 19/10/2021).
Do inteiro teor do acórdão, extrai-se a seguinte passagem que evidencia a constatação de contradição entre as cláusulas contratuais e julgamento favorável ao contratante:
Há, portanto, contradição nas cláusulas, pois a primeira exclui cobertura de danos de alagamento por entrada da chuva por força de ventos; e a segunda prevê a cobertura se a entrada da água da chuva ocorrer por aberturas decorrentes de danos materiais acidentais da ventania coberta. A interpretação das cláusulas deve ser feita de forma a reconhecer a cobertura securitária no caso dos autos.
A controvérsia da temática não deve retirar a esperança dos contratantes de seguro que estão dentre os mais de 2 milhões de cidadãos gaúchos que tiveram seu patrimônio devastado, número esse que representa cerca de 40% dos seguros contratados no Brasil.
Há indícios de que as seguradoras poderão avaliar eventual exceção sobre os sinistros ocorridos no Estado do Rio Grande do Sul, ante a repercussão nacional e mundial do desastre, como forma de o segmento auxiliar na minimização da tragédia, na linha das condutas de prorrogação do prazo de pagamento do seguro parcelado e de simplificação do processo de análise de abertura do sinistro já adotadas por algumas empresas.
Há, no entanto, de se ter cautela, eis que o modus operandi das seguradoras dá conta que essas devem indenizar tão somente os danos expressamente cobertos nas apólices, as quais em sua grande maioria excluem a cobertura securitária sobre sinistros decorrentes de desastres climáticos/meteorológicos.
É de fundamental importância a análise jurídica pormenorizada das apólices de seguro por meio de profissionais especializados, que poderão postular – administrativa e judicialmente
– a aplicação das normas do Código de Defesa do Consumidor e do Código Civil na relação contratual, bem como localizar eventuais cláusulas abusivas e realizar interpretações mais adequadas à função social dos contratos, a fim de garantir a cobertura securitária e o atendimento à finalidade do negócio (proteção do patrimônio), auxiliando os leitores, contratantes de seguros e atingidos pela tragédia, a serem indenizados.
Dra. Angélica Salvagni, Advogada da Lamachia Advogados.
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Angélica Salvagni